Diploma e corporativismo X Liberdade de expressão e de imprensa

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por JOÃO AUGUSTO CARDOSO


A grande polêmica sobre a exigência do diploma de jornalismo ou comunicação social para o exercício da profissão de jornalista no Brasil, criado pelo governo militar através do Decreto-lei nº 972 de 1969, e que se instaurou tarde no judiciário brasileiro, se deu tão somente em 2001, quando o Ministério Público Federal ajuizou uma Ação Civil Pública na Justiça Federal em São Paulo. Oito anos depois, ao menos na esfera judicial, a polêmica terminou com a tão esperada manifestação do Supremo Tribunal Federal que decidiu, no último dia 17, pela liberdade de expressão e de imprensa, declarando a inconstitucionalidade de dispositivo do decreto-lei, revogando a exigência de diploma para o livre exercício do jornalismo.
A questão não é tão simples como se é apresentada tanto pelos órgãos corporativistas como a FENAJ – Federação Nacional de Jornalistas e seus sindicatos e outros, a favor da manutenção da exigência do diploma, como também por instituições contrárias a tal exegese legal. A discussão vai mais além. Estritamente sob o ponto de vista jurídico, à parte as paixões que o tema enleva, em estreita síntese vamos abordar, além de um breve histórico do trâmite judicial, questões de natureza constitucional, de direitos humanos e direito internacional.
A contenda judicial perdurou por longos oito anos, iniciando-se pela propositura de Ação Civil Pública, em 23 de outubro de 2001, pelo Ministério Público Federal e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo, que tramitou pela 16º Vara Cível da Justiça Federal de São Paulo, visando à abolição das exigências contidas no Decreto-lei de 1969 para o exercício da profissão de jornalista, sendo a principal, a exigência do diploma obtido em curso superior de jornalismo ou comunicação social. A juíza federal do caso, Carla Abrantkoski Rister, deferiu medida liminar caçando a exigência do diploma, sendo confirmada na sentença que terminou essa fase processual em 2003.
Em 23 de julho do mesmo ano, a desembargadora do Tribunal Federal da 3ª Região, Alda Basto, suspendeu a sentença da juíza federal Carla Rister, voltando à obrigatoriedade do diploma. Em novo recurso, o juiz federal Manoel Álvares, convocado para o TRF da 3ª Região, restabeleceu a sentença proferida pela juíza da 16ª Vara Federal. Nessa instância, o processo terminou em 2006, mantendo a obrigatoriedade do curso de jornalista.
Em outra ação judicial que foi parar no Superior Tribunal de Justiça, o médico e consultor de saúde de programa de televisão em Bauru, José Eduardo Marques, em 8 de novembro de 2006, teve seu pedido negado, quando o STJ manteve a obrigatoriedade do diploma e invalidou seu registro de jornalista.
Em setembro de 2006, a decisão que findou o processo na Justiça Federal de São Paulo, em segunda instância, ensejou novo recurso, por se tratar de matéria constitucional, e foi parar no Supremo Tribunal Federal. O ministro presidente Gilmar Mendes, relator do processo, emitiu decisão liminar em 2006, revogando a obrigatoriedade do diploma de jornalista.
Oito anos depois, o Recurso Extraordinário que reuniu na última quarta-feira, dia 17, os ministros do Supremo Tribunal Federal, derrubou definitivamente, por oito votos a um, a obrigatoriedade do diploma de curso de jornalismo ou comunicação social para o exercício da profissão de jornalista por ser inconstitucional, proferindo, em síntese, a seguinte decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes (Presidente), conheceu e deu provimento aos recursos extraordinários, declarando a não-recepção do artigo 4º, inciso V, do Decreto-lei nº 972/1969, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio Mello.
É inegável que a Constituição Federal de 1988, a chamada constituição cidadã, não recepcionou o dispositivo contido no art. 4º do Decreto-Lei nº 972, de 17 de outubro de 1969, que impõe “condições para o exercício da profissão de jornalista”, e em especial seu inciso V, que determina a obrigatoriedade do diploma de curso de jornalismo ou comunicação social, em nível superior. No mesmo sentido isso ocorre com o art. 4º, inciso III do Decreto 83.248, de 1979, que também veio dar nova regulamentação à profissão de jornalista, em decorrência das alterações introduzidas pela Lei 6.612/1978.
Nossa Carta Magna, ao tratar dos Direitos Individuais e Coletivos, prescreve desde logo em seu art. 5º, inciso IV, o seguinte: é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Na seqüência, o inciso IX do mesmo artigo determina que: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Também objeto da histórica lide, magistralmente culminada dia 17 passado, o inciso XIII obteve relevância do ponto de vista do livre exercício da profissão, que assim determina: é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.
É claro que aqui, em contraponto ao mandamento constitucional acima epigrafado, alegava-se que tais qualificações profissionais, ou seja, o diploma, era requisito legal e indispensável para o exercício da profissão do jornalista, porém, estabelecido por norma infraconstitucional, o Decreto-lei 972/1969. Ainda, para apadrinhar a obrigatoriedade da exigência do curso de jornalismo, seus defensores evocavam outros artigos do autoritário decreto-lei, protestando que não havia violação de direitos constitucionais visto que qualquer um poderia escrever em jornais como colaborador (sem vínculo empregatício) ou como provisionado. Em ambos os casos o decreto-lei prevê várias “exigências”.
Ainda, não bastassem esses direitos fundamentais acima transcritos, ao tratar em especial da Comunicação Social em seu Capítulo V, a Lei Maior insculpiu inequívoca determinação em sentido contrário ao previsto pelo combatido Decreto-lei 972/1969, quando estatui em seu art. 220 que: A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição; complementado por seu parágrafo primeiro, que explicitamente estabelece que: Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
Continua na próxima edição.